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Reflexões sobre o processo de revisão da Política Nacional de Terras: Processo e Qualidade do Dia...


O processo de revisão da Política Nacional de Terras (PNT) de 1995 foi lançado em 2017 pelo Presidente da República na IX sessão do Fórum de Consulta sobre Terras (FCT), com as seguintes directrizes: (i) a manutenção da propriedade Estado sobre a terra e os outros recursos naturais; (ii) a garantia do acesso e uso da terra por todos os Moçambicanos; (iii) a protecção dos direitos adquiridos pelas famílias e pelas comunidades locais. Para o efeito, foi criada, em 2018, uma comissão – a Comissão de Revisão da Política Nacional de Terras (CRPNT) – “um órgão para a coordenação, elaboração e condução do processo das consultas sobre a revisão da Política Nacional de Terras e Estratégia de Implementação e do respectivo quadro regulador e institucional” (MTA, 2020).

Tal como referido pelo Presidente, os fundamentos desta revisão decorrem da necessidade de melhorar o uso e aproveitamento da terra no país porque: “…o actual contexto e desafios de crescimento e desenvolvimento económico e social do país remete-nos a uma necessidade de se lançar uma avaliação da governação da terra no país e olhar para os pequenos ajustamentos de percurso que se devem projectar para melhorar o uso e aproveitamento da terra”. Mesmo considerando legítima a intenção de rever a actual PNT, com base nos fundamentos apresentados, constata-se, quer através dos vários estudos publicados, quer como resultado de diversos debates, que o problema fundamental não está no conteúdo da actual política e legislação, mas, sim, na capacidade do governo de cumprir e fazer cumprir a Lei. Estes problemas podem, e devem, ser resolvidos por recurso a outros mecanismos de melhoria da governação, mas as várias tentativas feitas pela sociedade civil de sugerir a adopção de novos instrumentos legais de menor complexidade para atender às lacunas na legislação e problemas extra-legais não foram acolhidas. Neste sentido, continuamos a achar que, paralelamente à revisão da PNT, um processo necessariamente longo e complexo, é necessário considerar e integrar, através de instrumentos mais simples, os ajustamentos necessários à actual legislação como forma de reforçar os princípios preconizados na PNT de 1995, que sistematicamente têm sido descurados.

O processo de revisão da PNT, que formalmente iniciou no ano 2017, foi orientado por uma metodologia que previa, entre outros aspectos: (i) um processo de revisão de literatura de documentos resultantes de: (a) Relatórios das sessões do FCT e do LGAF; (b) Relatórios e outros documentos do Ministério da Terra e Ambiente; e (c) estudos e publicações académicas sobre a temática; (ii) um processo de auscultação pública transparente, participativa e inclusiva. Estes dois processos serviriam de base para a elaboração de um diagnóstico do grau de implementação da PNT de 1995, que indicasse, claramente e de forma fundamentada, quais os constrangimentos na gestão e administração de terras assim como as lacunas a serem consideradas no processo de revisão.

O diagnóstico da actual PNT ocorreria no período entre Março de 2020, com a elaboração do plano de acção do processo de revisão, e princípio de 2022, cobrindo o horizonte temporal desde a aprovação da PNT em 1995 até ao momento. Com base neste diagnóstico, seria posteriormente elaborada uma proposta para uma nova PNT.

No entanto, a avaliação dos cerca de 3 anos de trabalho da Comissão de Revisão da Política Nacional de Terras (CRPNT), feita a partir do documento do Diagnóstico e da proposta da nova política, ambos em circulação para comentários, permite concluir que a metodologia proposta não foi cumprida e questionar a qualidade dos documentos em circulação, e a fundamentação para uma PNT revista. O não seguimento de uma metodologia adequada não permite avaliar e validar as respostas da população em relação às questões relativas às suas preocupações relativamente à terra, avaliar a percepção pública sobre a actual política, assim como o seu grau de implementação. Constata-se igualmente uma reduzida análise documental, incluindo análise dos resultados dos vários debates, estudos e propostas de soluções ao longo dos cerca de 26 anos de vigência da PNT e da LT.

Da breve análise feita ao processo foi possível apontar vários atropelos de natureza metodológica, sobretudo na participação pública, que põem em causa a qualidade e o rigor da nova PNT, desde o processo de auscultação ao processo de elaboração do diagnóstico e, consequentemente, o processo de elaboração da nova PNT. Tanto o documento do diagnóstico como o da PNT deveriam ter seguido, de forma inclusiva e participativa, processos de revisão e validação de todas as partes interessadas, incluindo a Sociedade Civil. Estes princípios foram, sistematicamente, desrespeitados.

COMENTÁRIOS AO PROCESSO DE AUSCULTAÇÃO E SUA METODOLOGIA

O processo de auscultação pública iniciou em Julho de 2020 e de acordo com o plano de acção do processo de revisão da PNT (MTA, 2020: 6): “A auscultação ao público consiste em ouvir os diferentes actores da terra e aos outros actores sociais interessados sobre o que pensam em relação às questões colocadas, as suas opiniões e recomendações com o fim de ver as mesmas reflectidas nas opções finais adoptadas, quer no documento de política, quer nos diplomas legais a resultarem do processo”.

A União Africana recomenda que os Estados membros devem assegurar que a elaboração das políticas da terra seja feita de forma participativa e inclusiva, uma vez que a terra envolve muita sensibilidade política, devendo ser seguidos os seguintes princípios: (1) preparação social e consciencialização; (2) representação e inclusão; (3) imparcialidade; (4) interacção e retroalimentação; (5) transparência.

Sendo assim, este processo deveria ter envolvido vários actores a nível central e local (OSCs, sector privado, comunidades, academia, entre outros) através de diferentes mecanismos de auscultação: (1) debates temáticos; (2) entrevistas semi-estruturadas; (3) sessões de discussão alargada e grupos focais; (4) questionários a cidadãos de diferenciados segmentos populacionais; entre outros mecanismos de recolha de informação.

Na realidade, este processo de auscultação baseou-se principalmente em questionários individuais e colectivos e auscultação directa a alguns indivíduos e OSCs. No entanto, do que nos foi dado a conhecer, verificou-se o uso inadequado de instrumentos de recolha de informação (em particular em relação aos questionários colectivos), que não permitiam a discussão de pontos que não constavam no inquérito, com alto risco de serem estatisticamente não-válidos (cálculo amostral, uso de questionários com perguntas fechadas e pré-definidas; uso de questionários colectivos tratados como individuais). Para além disto, não foram acauteladas todas as condições necessárias para assegurar a representatividade dos diversos grupos sociais, como é o caso da participação da mulher, jovens e outros grupos sociais, e o acesso equitativo à informação. Para agravar este cenário, as evidências indicam que as auscultações não foram antecedidas por um processo de consciencialização, e não se indicaram os mecanismos adoptados para lidar com o contexto da pandemia e da insegurança militar na região norte de Cabo Delgado.

De um modo geral, o processo de auscultação foi ineficaz e metodologicamente deficiente, o que põe em causa a sua legitimidade e validade. Como consequência da falta de rigor metodológico, os resultados apresentados no diagnóstico correm o risco de não representarem a realidade, neste caso as experiências, os interesses e pontos de vista dos auscultados. Neste contexto, questiona-se a transparência, inclusão e participação democrática no processo, tal como tem sido aludido pela CRPNT, o que nos leva a questionar os objectivos que se pretende legitimar a partir de um processo de auscultação mal conduzido.

COMENTÁRIOS AO RELATÓRIO DO DIAGNÓSTICO

O documento de diagnóstico apresentado pela CRPNT está dividido em quatro partes: (1) Contextualização da PNT 1995; (2) Diagnóstico do grau de implementação da PNT 1995; (3) Questões de reflexão da política de terras/questões de reforma; (4) Desafios e prioridades nacionais da revisão da PNT. Neste documento são identificadas lacunas na Lei e possíveis reformas para as colmatar. Porém, este não apresenta, de forma clara e explícita, a metodologia usada para se chegar a tais constatações, apesar de se mencionar, a meio do documento, que o mesmo se baseou numa combinação de revisão de literatura e de dados colectados no processo de auscultação.

A estrutura de apresentação das lacunas (que se baseou em apresentar o propósito e impacto, seguido de uma proposta de reforma) pode ser considerada adequada; no entanto, a fundamentação de tais propostas (indicadores quantitativos e qualitativos que as sustentam) poderia ser melhorada. Em resumo, destacam-se a seguir os aspectos que devem merecer melhoria:

Superficialidade das análises e falta de evidências: um documento de diagnóstico deve ser baseado em análises estruturadas, aprofundadas e com base em diferentes tipos de indicadores (qualitativos e quantitativos). O diagnóstico da CRPNT é principalmente de natureza descritiva e as conclusões são apresentadas sem uma fundamentação prévia e sem evidências.

• Silêncio em relação aos problemas de integridade no sector e ineficácia do sistema para fazer cumprir a Lei: sendo um documento que deve procurar compreender as raízes dos problemas do sector, é importante que se abordem as diferentes dinâmicas da corrupção e ineficiência na governação que contribuíram para a não-implementação dos objectivos centrais da política de terras de 1995. • Metodologia:

Revisão de literatura: foram feitas algumas referências esporádicas a estudos e relatórios (predominantemente do FCT e MTA) para contextualização de alguns aspectos do sector. No entanto, estes estudos não são usados para analisar os constrangimentos nem fundamentar as propostas de reformas e alterações a Lei ou a PNT presentes neste diagnóstico.

Auscultação pública: para além dos problemas acima referidos, os dados do processo de auscultação não foram mencionados ao longo do documento para sustentar e nem para fundamentar as sugestões e propostas de reformas.

Análise FOFA (SWOT): durante a fase de diagnóstico, a CRPNT produziu uma análise FOFA, na tentativa de identificar as forças, oportunidades, fraquezas e ameaças do sector. No entanto, para além de apresentar inconsistências, esta análise apresenta lacunas em relação a factores fundamentais para a identificação fidedigna dos problemas que afectam o sector e o alcance dos objectivos pretendidos com esta reforma. A título de exemplo, a análise não faz menção à questão de conflitos de interesse e corrupção no âmbito dos conflitos de terras, nem, tão pouco, menciona a existência de deslocados devido aos efeitos das mudanças climáticas e do conflito armado em Cabo Delgado.

Em conclusão, e por forma a conferir a devida qualidade e legitimidade do processo e relatório de diagnostico, é importante que os problemas metodológicos detectados na elaboração do diagnóstico sejam minimizados, devendo a CRPNT igualmente clarificar como analisou e identificou os constrangimentos na gestão e administração de terras em Moçambique. Adicionalmente, as propostas e sugestões de alterações e reformas devem ser devidamente fundamentadas e devidamente analisadas em termos de implicações futuras.

Por exemplo, considerando que uma das principais linhas a discutir nesta revisão é a questão da transmissibilidade do DUAT, onde, de acordo com a proposta do documento do diagnóstico: “a terra passa a ser vista como um bem transacionável e de valor no mercado através dos títulos do DUAT”, o documento deve apresentar evidências concretas de que este é um constrangimento na gestão e administração de terras em Moçambique, indicando igualmente as possíveis implicações de a terra passar a ser um bem transacionável – com base em estudos e experiências internacionais – (sociais, económicas e de segurança em relação à posse de terra).

É nosso entendimento que um documento de diagnóstico produzido com base numa metodologia problemática terá potencialmente resultados e conclusões enviesadas, que não reflectem a realidade e que resultarão na tomada de decisões desajustadas e ineficazes para o alcance da diminuição da pobreza, inclusão económica e desenvolvimento sustentável. Sem um diagnóstico sólido, a Política Nacional de Terras que daí resultar terá uma qualidade questionável, dificilmente poderá reflectir as aspirações e interesses de todos os moçambicanos, e terá sido adoptada em contradição com as três directrizes estabelecidas pelo próprio PR aquando do lançamento deste processo de revisão.

Para ter acesso ao documento, acesse o link abaixo: https://omrmz.org/omrweb/wp-content/uploads/DR-155-Reflex%C3%B5es-sobre-a-PNT.pdf


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